O Regresso (2015) é um filme dirigido por Alejandro G. Iñárritu, também conhecido por Amores Brutos (Amores Perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e, mais recentemente, Birdman (2014). Se você ainda não encontrou três horas no seu dia para dedicar a este belo filme, eis o enredo. Baseado em fatos reais, O Regresso conta a história do explorador Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) que é atacado por um urso durante uma expedição em 1823 no território inexplorado da Louisiana (EUA). Após ser gravemente ferido, ele é abandonado pelo seu companheiro John Fitzgerald (Tom Hardy) que não apenas o deixa morrer, mas além disso assassina o filho de Glass diante deste. Glass sobrevive, contudo, e se aventura sozinho pelo território selvagem à procura de vingança.
O Regresso e Espinoza
Toda a narrativa de O Regresso gira em torno da relação existente entre os personagens e o espaço físico no qual eles se encontram: o mundo selvagem do Velho Oeste americano do século XIX, que aqui mostra uma face bem diferente do clássico deserto dos Westerns. Mais do que um simples plano de fundo, a natureza funciona como um espaço no qual a vulnerabilidade dos personagens é exposta, sobretudo diante do poder desse ambiente, evidenciada pela frieza da neve, pela força dos rios ou ainda pela agressividade dos ursos. Esta forma de expressar a natureza é resultado sobretudo do trabalho excepcional do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (famoso por filmes como A árvore da vida (The Tree of Life, 2011) de Terrence Malick e do nauseante Gravity (2013) de Alfonso Cuarón). As images são extremamente belas, mas cruas. Cada enquadramento expõe a natureza tanto na simplicidade de sua beleza (basta observar o plano inicial da água correndo pelo rio ou ainda os múltiplos planos das grandes árvores vistas de baixo) quanto em sua imponência (algo que podemos perceber no plano geral de Glass em sua pequenez vagueando na neve e pela sequência na qual Glass é atacado por urso. Sequência que é, aliás, de um realismo desconfortável). Assim, através de sua câmera, Lubezki não apenas nos insere na natureza, ele expressa além disso a grandiosidade desse espaço, que engloba tudo e todos. As imagens parecem transmitir, neste sentido, a ideia de um encontro divino, o que é manifesto pelos vários planos nos quais a câmera se encontra em contra-plongée, como se fôssemos pequenos diante dessa totalidade que nos rodeia. E mesmo quando o foco é no personagem enquadrado pelo plano, o ângulo escolhido frequentemente coloca este personagem “abaixo” da natureza ao seu entorno.
Mas que ideia de “natureza” essa forma de expressão do espaço manifesta ? O filósofo holandês Baruch de Espinoza (1632 – 1677, vide abaixo) nos propõe uma definição da natureza que parece estar em perfeita sintonia com o que O Regresso nos mostra. Respire fundo e pé na estrada! Espinoza defendeu, dentre outras coisas, que o Universo é constituído de uma substância única. Essa substância é Deus: “Tudo existe em Deus e d´Ele depende de tal maneira que nada pode existir nem ser concebido sem Ele” (Ética, I, Apêndice). Uma vez que nada existe fora de Deus, Natureza e Deus se tornam termos que designam a mesma coisa, a mesma Substância. Assim, como o filósofo afirma, Deus sive Natura (“Deus, ou seja, a Natureza” em latim), em ambos casos se trata da mesma coisa. Você pode estar pensando que Espinoza soa mais como uma espécie de hippie da era moderna. Longe disso. Ele busca simplesmente apontar uma definição de Deus que não seja o Deus religioso da tradição judaico-cristã, pois Deus enquanto Substância não tem finalidade ou vontade. Trata-se, ao contrário, de um Deus/ Natureza que é a essência mesmo de toda existência. Consequentemente as dimensões física e mental que compõem nossa realidade não constituem dois mundos paralelos, mas duas esferas sobrepostas que coexistem nessa mesma substância única que é tudo. Nós, seres humanos, enquanto parte dessa Natureza e manifestação de Deus, nos encontramos também em coexistência com a Substância e somos, portanto, determinados pelas forças desta, às quais estamos ligado.
Ora, em O Regresso uma concepção muito parecida de natureza parece estar em jogo. Deus sive Natura, os personagens estão constantemente em presença de algo que os excede e que os afeta. Que chamemos isso de Natureza ou Deus, pouco importa no filme, mas o sentimento é, não obstante, o mesmo: há aqui uma Substância que penetra tudo e que define os seres que ali se encontram. Essa influência pode ser percebida pela forma como os personagens são afetados pelo espaço. Se, por um lado, a dimensão rude da natureza pode ser percebida nas próprias ações dos personagens, que são frequentemente hostis uns com os outros, por outro lado há também uma dimensão de delicadeza do ambiente natural (nas gotas de neve que caem, no pôr do sol, etc.) que parece ser refletida em certos momentos de ternura entre os personagens, como nas cenas entre Glass e sua mulher e na relação do capitão com Glass. Para o melhor ou para o pior, o comportamento humano parece assim espelhar frequentemente a maneira como a própria natureza se manifesta. Não se trata, então, apenas de um espaço aleatório, mas de uma substância maior que cada pessoa, rio, planta e animal enquadrados e da qual nenhum desses pode se desvencilhar. E no entanto esta imponência da natureza divina não aparece como uma crítica de valor – a natureza não é “má” porque se manifesta com hostilidade – mas como demonstração da sua força intransigente, contra a qual nenhum ser pode lutar. Nem o urso, que pela sua própria constituição natural agride para proteger sua prole, nem o humano, que caça para sustentar sua família ou que mata um semelhante para proteger seus interesses. A dimensão psicológica de cada personagem não pode ser separada da dimensão física do espaço em que se encontram porque ambas dimensões coexistem e afetam uma à outra. Num ambiente rude, é apenas com hostilidade que os homens aprendem a responder, da mesma forma que em momentos de harmonia com o mundo (como nas lembranças de Glass), a reação é de tranquilidade. Esta conexão entre o natural e o humano pode ser percebida sobretudo na forma como Lubezki movimenta a câmera: há inúmeros planos-sequência fluidos e muito bem trabalhados, criando uma espécie de conexão entre todas as coisas. Espaço e personagens parecem estar sempre interligados, de forma que os diversos comportamentos pode ser compreendido em grande medida como reação ao ambiente.
Natureza e afecção
O comportamento dos personagens, seja ele bruto ou gentil, pode ser visto justamente como resultado da forma como estes homens são afetados (fisicamente e mentalmente) pelo mundo que os rodeia. Neste contexto a agressividade do animal, a rudez dos mercenários ou ainda a ganância de Fitzgerald não são sinais de uma maldade inata, mas simplesmente dimensões que fazem naturalmente parte do mundo. São formas como estes seres respondem ao ambiente e contexto em que estão. E no entanto a naturalidade desta resposta não isenta os homens da responsabilidade de suas escolhas. O assassinato de Hawk não nos parece aceitável, por exemplo, simplesmente por ser uma reação "natural" de Fitzgerald. Nosso repúdio é justificável justamente porque, como Espinoza aponta, talvez não tenhamos controle sobre a maneira como somos afetados pelo mundo, mas temos a capacidade de aprender a entendê-la e moderá-la. Como?
Segundo Espinoza frequentemente acreditamos que as afecções que sentimos são externas à nós, mas já que nós mesmo somos expressão da Natureza, estas afecções nada mais são do que manifestação da nossa própria natureza, porque ser afetado significa ter um corpo está no mundo e que sente algo com relação a este mundo (vale ressaltar que dentro da grande categoria "afecção" Espinoza distingue dois subgêneros, os afetos e as paixões, mas não levarei em conta essa distinção, falarei das afecções de forma geral, me referindo a sentimentos como medo, raiva, amor, tédio, etc.). Por exemplo, quando sentimos medo acreditamos que há algo no mundo que constitui uma ameaça à nossa vida ou segurança, como alguém que pode estar nos seguindo na rua ou simplesmente a sensação de que aquela aranha gigantesca no canto do quarto está prestes a nos atacar. Mas a verdade é que esta afecção é interior à nós, pois é a forma como nosso corpo reage à este contexto. Neste sentido, o medo é uma forma de estar no mundo na qual nosso corpo reage liberando certas toxinas que criam o sentimento que chamamos de “medo”. Esta reação é, portanto, interna à nós e não externa. O medo do ataque da aranha está em mim e não na situação em si. Prova disso é que certamente existem pessoas que neste mesmo contexto não teriam problema algum. O medo é a forma como o ser humano, por sua constituição natural, reage à certas situações e por isso ele é, como toda afecção, manifestação da nossa própria natureza. Por esta razão, para Espinoza as afecções não devem ser reprimidas ou eliminadas, elas são naturais. Mas elas podem e devem ser entendidas e moderadas. Essa capacidade de compreensão das nossas afecções e de lidar com elas de forma mais racional é justamente o que justifica nosso repúdio pelas ações de Fitzgerald. Ele não controla talvez o que sente, mas certamente poderia controlar como age.
A aceitação de Glass como liberdade
Segundo Espinoza, quaisquer que sejam as afeções que sentimos, todos temos uma vontade constante de agir, de continuar vivo (o que ele chama de conatus). No caso do medo, por exemplo, nossa vontade de agir diminui porque frequentemente tendemos a paralisar. Imagine um tigre prestes a nos atacar: "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Isto nos paralisa. Mas como temos esse desejo inato de persistir na vida, quando enfrentamos uma situação de medo agiremos acima de tudo de forma a proteger nossa existência. A um certo momento ou vamos encontrar um meio de fugir ou vamos tentar eliminar a causa do medo para seguirmos nossa vida tranquilos. A visão de Epinoza é, neste sentido, determinística, já que para ele somos determinados pela forma como a Natureza nos afeta e pela maneira como, consequentemente, ela define nossas ações. Neste contexto, a liberdade humana aparece como a nossa capacidade de entender a determinação natural do nosso ser, ou seja as razões pelas quais agimos como agimos. Com relação ao medo, nossa liberdade não é de escolher sentí-lo ou não, essa é uma afecção que faz parte do nosso ser e portanto não pode ser suprimida. O que temos é a liberdade para compreender o que é o medo e, a partir desse conhecimento, saber lidar melhor com ele quando ele advém. Segundo Espinoza, quando entendemos a origem de nossas afecções, nos tornamos menos suscetíveis de sermos guiados cegamente por estas afecções e vivemos, portanto, melhor. A liberdade concerne assim não nosso poder de escolha, mas de aceitação e compreensão. O sábio se distingue do ignorante pela sua capacidade de aceitar o que é, uma determinação da Natureza, e de compreender a forma como ele é afetado por ela: “Diz-se live, a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir” (Ética, I, Definição 7).
A perseverança de Glass aparece, desta forma, também como uma resposta natural, como expressão da vontade de agir inerente a todo homem que faz com que nos esforcemos em continuar vivos. Certamente ao longo do filme sua sobrevivência não nos parece tanto um desejo (conatus) pela vida, mas mais como uma procura cega por vingança “à la John Wick”. No entanto no final, quando ele deixa a morte de outro homem nas mãos de Deus, percebemos que Glass adquire uma nova atitude. Ele entende que sua reação vingativa é uma simples afecção sentida por ele como resultado de um contexto específico de injustiça que o mundo e a vida lhe impuseram, mas que não há controle algum de sua parte. Matar alguém que lhe causou sofrimento não traria o alívio e liberdade procurados por Glass, justamente porque, em termos espinozísticos, a liberdade não concerne um poder de escolha, mas de compreensão da nossa determinação como parte de algo maior. Neste sentido, apesar de compartilharem uma mesma afecção, o ódio, a ação final de Glass é oposta à ação de Fitzgerald. Enquanto este é incapaz de moderar sua raiva e comete um assassinato em nome de tal sentimento, Glass ganha consciência da origem de seu sentimento, liberando aquele que é alvo do seu ódio e, com isto, se libertando da escravidão desta afecção. O momento em que Glass abandona o corpo de Fitzgerald no rio expressa esse instante de compreensão: ele parece finalmente aceitar seu papel como parte de algo maior. Quando essa aceitação acontece, mesmo a harmonia entre ele e outros seres (no caso a tribo ameríndia) é restaurada. Se ao longo de seu duro percurso Glass foi escravo de sua sede por vingança, o reencontro final com sua mulher é justamente representativo dessa compreensão adquirida pelo personagem. “A vingança está nas mãos de Deus, não nas minhas”, ele afirma. A sabedoria de Glass o liberta.
Em O Regresso Iñárritu nos oferece, assim, a experiência de um mundo unitário no qual seus componentes – homens, animas e plantas – afetam-se mutuamente e constantemente. Nós refletimos a Natureza/ Deus porque somos parte e expressão deles. Neste sentido, nossas afecções, que elas sejam positivas ou negativas, não devem ser vistas como algo intrinsecamente ruins, da mesma forma que os personagens de O Regresso não devem ser vistos como puramente maus. Não temos diante de nós homens necessariamente cruéis, mas seres humanos afetados de formas diversas pelo mundo hostil no qual se encontram e que encontram dificuldade em lidar com estas afecções que os afligem. Como Espinoza nos mostra, estas afecções são a manifestação da nossa interação com o mundo e por isso são naturais. Mas ao invés de nos tornamos simples escravos delas, como Glass inicialmente com relação a seu sentimento de vingança ou Fitzgerald com relação à sua ganância, podemos sempre tentar compreendê-las e moderá-las e assim nos libertarmos daquilo que nos faz mal. Quando compreendemos essa dimensão determinística de nossa natureza humana, passamos a entender melhor nossa relação com o mundo e podemos, então, estabelecer encontros mais saudáveis (com as coisas, com as pessoas, com os lugares) e, consequentemente, uma relação harmoniosa com a Natureza/ Deus. Talvez, em termos espinozísticos, nos falte justamente a aceitação final de Glass: o entendimento de que há uma conexão entre tudo e todos do qual não podemos nos desvencilhar e enquanto agirmos de forma egoísta, simplesmente seguindo cegamente nossas afecções pessoais, nunca seremos livres. Ao que parece, precisamos de mais planos-sequência “lubezkianos” em nossas vidas, permitindo uma compreensão da nossa conexão com a substância espinozística que nos compõe e define quem somos.
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