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Divertimento em “Ready Player One”

Atualizado: 3 de ago. de 2022

Ready Player One (2018) é o mais recente filme de Steven Spielberg, adaptado do livro de Ernest Cline Jogador N°1 (Ready Player One) lançado em 2011. Se você é um grande fã de vídeo-games e dos anos 80, este filme te agradará certamente. Eis o enredo. Em 2045 o mundo sofre de vários problemas : crie energética, mudanças climáticas, miséria, fome. O único escape dos humanos é um mundo virtual chamado "OASIS" acessado através de capacetes de realidade virtual. Quando James Halliday (Mark Rylance), o excêntrico criador desta realidade, morre, ele libera um vídeo no qual ele desafia os usuários da OASIS à encontrar seus “easter-eggs”. Aquele que os encontrar, herdará sua fortuna e, consequentemente, possuirá a OASIS. O problema é que Sorrento (Ben Mendelsohn), o ambicioso dono de uma grande empresa, pretende encontrar estes easter-eggs para destruir a OASIS, quando ela pertencerá a ele.


Ready Player One e Pascal

A narrativa é focada em Wade (Tye Sheridan), que além de ser um excelente jogador da OASIS, tem grande admiração e profundo conhecimento dessa realidade alternativa. Com a ajuda de seus amigos virtuais e da misteriosa Samantha (Olivia Cooke), por quem ele se apaixona, Wade consegue encontrar todos os easter-eggs e herdar a fortuna de Halliday. Mas por trás dessa história simples esconde-se uma questão central: o velho problema “mundo real vs. realidade virtual”. Enquanto no mundo real as pessoas moram em pequenos barracos amontoados e caminham por ruas sujas, no mundo da OASIS os jogadores podem se tornar quem desejam. Diante da realidade deprimente na qual vivem, as pessoas se voltam à OASIS em busca de escapatória. Este contexto nos permite compreender melhor o personagem de Wade, que luta para ganhar o jogo e preservar a OASIS justamente por reconhecer a importância deste espaço como algo que nos ajuda a suportar melhor uma vida que é miserável. Além disso, o apego de Wade à OASIS é também fruto de uma certa nostalgia que ele sente por jogo clássicos, que ainda são presentes nessa realidade virtual. Essa nostalgia é, aliás, um ponto central para a construção estética do filme. Se a narrativa não nos surpreende, a forma conferida ao filme por Spielberg é admirável. A mistura entre o virtual e o real é bem construída e o filme reproduz o estilo dos filmes dos anos 80, seja pelo tom caricatural do vilão, pelas múltiplas referências à época ou pela forma como toda a história se desenvolve de forma similar a clássicos como De Volta Para o Futuro (Back to the Future, 1985), Os Goonies (The Goonies, 1985) ou ainda Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller's Day Off, 1986), que misturam aventura e humor.



Neste contexto, de que maneira poderíamos interpretar a função da diversão proporcionada pela OASIS no mundo de Ready Player One: alivio ou fuga ? Para podermos pensar sobre a questão proponho que demos uma espiada na definição de divertimento do filósofo francês Blaise Pascal (1623 – 1662) – que segundo a foto abaixo não parece jamais ter se divertido em sua vida. “Let’s hit the road, Jack!” Normalmente entendemos o divertimento como um termo que se refere à jogos e diversões, mas segundo Pascal na sua obra Pensamentos ele é um termo mais abrangente que engloba todo tipo de atividade que nos permite ignorar a consciência da nossa miséria. Essa miséria deriva do fato de que nossa natureza é mortal e que nossa existência é contingente. Para conseguir suportar essa condição tentamos nos distrair para pensarmos o menos possível nestes fatos. Nós agimos como se nossas ações buscassem objetivos específicos. Mas para Pascal todo divertimento é no fundo apenas uma forma de fugir do tédio que nos obriga a refletir, nos forçando a tomar consciência da nossa condição: “É, para ela [a alma], uma pena insuportável ser obrigada a viver consigo e a pensar em si. Assim, todo o seu cuidado consiste em se esquecer de si mesma e deixar correr esse tempo tão curto e tão precioso sem reflexão, ocupando-se com coisas que a impedem de pensar nisso. Eis a origem de todas as ocupações tumultuarias dos homens e de tudo o que se chama de divertimento ou passatempo, nos quais, de fato, não se tem por fim senão deixar neles passar o tempo sem o sentir, ou antes, sem se sentir a si mesmo, e evitar, perdendo essa parte da vida, a amargura e o desgosto interior que acompanhariam necessariamente a atenção que se prestasse a si mesmo durante esse tempo” (Pascal, Pensamentos). Pensemos no exemplo de uma viagem. Acreditamos viajar para ver outras partes do mundo, para relaxar, para conhecer outras culturas ou encontrar novas pessoas. Mas segundo Pascal todas essa razões são objetivos colaterais, acreditamos que viajamos para expandir nossos horizontes, mas no fundo viajamos sobretudo para evitar ficar em casa e repensar a tragédia que é a nossa existência finita. Assim, quatro séculos atrás Pascal já percebia nossa necessidade de distração, algo que nunca esteve tao evidente quanto nos tempos atuais nos quais inventamos cada vez mais desculpas para não pensarmos na nossa realidade miserável. Por isso, fechamos nossos olhos e literalmente abrimos nossas carteiras para pagar atividades que nos permita evitar todo tipo de reflexão.



A OASIS como uma distração positiva

Dado que a OASIS é uma forma de divertimento, ela deveria então ser vista como algo prejudicial? Uma forma de ignorar a miséria em volta? Não necessariamente. Segundo Pascal existe sim um aspecto positivo do divertimento. Mesmo sendo uma forma de fuga da realidade, o divertimento pressupõe que se tentamos fugir é porque temos um mínimo de consciência da condição da qual nos esquivamos. Neste sentido, o divertimento é uma forma de progresso, já que não há uma negligência total da realidade. É justamente por termos consciência da nossa situação miserável que nos distraímos e esse mínimo de lucidez já é algo positivo. Essa consciência é necessária porque ela é o primeiro passo em direção à uma aceitação da nossa condição e essa aceitação nos permite viver em paz. Além disso ela nos protege do desespero da nossa condição. Assim, para Pascal o divertimento é totalmente justificável.


A perspectiva de Wade com relação OASIS é justamente esta, de uma distração que é essencialmente positiva. Ela é claramente uma fuga da realidade, algo que podemos perceber nas várias cenas nas quais os personagens literalmente fecham seus olhos ao mundo lá fora sujo enquanto usam seus capacetes de realidade alternativa. Mas essa fuga acontece precisamente porque os personagens entendem a realidade concreta na qual vivem. Samantha, mais do que qualquer outro personagem, parece estar ciente da miséria do mundo real no qual ela vive. E mesmo ela parece ver a OASIS como uma distração necessária, que a permite lidar melhor consigo mesma (por exemplo com relação à vergonha que sente de sua cicatriz). Por estas razões a OASIS nos parece uma distração aceitável. Diante da realidade na qual os personagens se encontram, entendemos a necessidade de recorrer a um mundo onde se é livre. As múltiplas referências de Spielberg à elementos da cultura pop (jogos, livros, quadrinhos, filmes, etc.) podem ser vistos justamente como um reconhecimento do valor desses elementos em nossas vidas diárias também. Assim como a OASIS, eles servem, neste sentido, como algo que nos dá forças e esperança, fazendo-nos acreditar que ao menos enquanto estamos conectados a estes elementos, nossa existência tem algum propósito e é mesmo divertida. Por isso a OASIS não parece uma distração ao todo ruim, já que os jogadores não parecem se alienar completamente, mas apenas verem nessa fuga uma forma de suportar a realidade e lidar melhor com a condição real na qual se encontram.



A OASIS como um escape perigoso

Mas ainda que a alienação ocasionada pela OASIS não seja total, os personagens de Ready Player One não nos parecem realmente preocupados em lidar concretamente com o mundo que os rodeia. Eles fazem de tudo para salvar a vida que criaram na OASIS, mas nunca vivem efetivamente o mundo real fora dela. Isso acontece porque existe um lado perigoso do divertimento, o que Pascal chama de “divertimento passivo”. Este aspecto do divertimento faz com ele funcione como uma escapatória que nos impede de viver o instante presente: “A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e, no entanto, é a maior das nossas misérias. Com efeito, é isso que nos impede principalmente de pensar em nos. Sem isso, ficaríamos desgostosos e esse desgosto nos levaria a procurar um meio mais sólido de sair dele. mas, o divertimento nos alegra e nos faz chegar insensivelmente à morte” (Pascal, Pensamentos). Se por um lado nossa procura por divertimento surge de um mínimo de consciência, por outro lado, em si, o divertimento tende a esconder a realidade de nós mesmos. À procura de objetivos ilusórios impostos pela distração, deixamos o tempo passar e não conseguimos nos concentrar no momento presente que deveríamos estar vivendo. Como diz Pascal, levamos à sério o que deveria ser apenas um “jogo”. Quem nunca preferiu ficar em casa assistindo uma comédia romântica, sonhando com um amor ilusório, ao invés de sair e realmente tentar conhecer alguém de carne e osso no mundo real. Alguém que certamente nunca será como o herói do filme, mas com quem poderíamos viver momentos agradáveis, quem sabe. Consequentemente, o divertimento faz com que a possibilidade de felicidade real nos escape porque estamos “presos” à uma distração fictícia que nos dispersa da realidade concreta e todas as coisas nela que poderiam nos fazer felizes. Ele nos priva assim da possibilidade de viver o presente e é só no presente que podemos realmente ser felizes. Afinal o passado já foi definido e o futuro só pode ser atingido através das ações que executamos...no presente: “Que cada qual examine os seus pensamentos, e os achará sempre ocupados com o passado e com o futuro. Quase não pensamos no presente; e quando pensamos, é apenas para tomar dele a luz para dispor do futuro. O presente não é nunca o nosso fim; o passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é o nosso fim. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver: e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos” (Pascal, Pensamentos).



É ao perigo desse aspecto do divertimento que Halliday alerta Wade no final do filme: "Eu criei a OASIS porque nunca me senti em casa no mundo real. Eu nunca soube como me conectar com as pessoas. Eu tive medo por toda minha vida. Até o dia em que eu soube que minha vida estava acabando. é então que me dei conta que por mais terrificante e dolorosa que a realidade possa ser, ela é também o único lugar onde se consegue ter uma refeição decente. Porque a realidade é real". A OASIS representa um perigo na medida em que os jogadores tendem a ignorar os acontecimentos no mundo real em prol da vida virtual. Wade ele mesmo nos é apresentado como alguém que negligencia o mundo no qual vive, privilegiando a vida que ele criou para si numa realidade fictícia. Mesmo suas amizades foram todas forjadas na OASIS. Mas no final, Wade parece levar em consideração o conselho de Halliday e afirma tentar se concentrar de vez em quando no mundo real, onde ele parece viver “feliz para sempre” com Sam. A lição que fica é que, como Pascal afirma, o divertimento pode se tornar um entrave à felicidade, quando por causa dele perdemos noção daquilo que realmente pode nos trazer felicidade: o instante presente. É certo que a OASIS continua sendo um entrave à construção de um mundo melhor, pois mesmo se Wade ganha consciência da importância do instante presente, ele não parece realmente mudar de postura com relação à realidade efetiva na qual vive. As pessoas seguem pobres, o mundo segue poluído e Wade segue ignorando a miséria da sua realidade. Mas de acordo com a fala de Halliday percebemos que o divertimento oferecido pela OASIS nunca visou impedir os jogadores de ganhar consciência e aceitar a realidade.



A abordagem de Ready Player One da questão do divertimento em nossa sociedade é extremamente ambígua. Se por um lado o diálogo final entre Halliday e Wade dá a entender que o divertimento pode ser um empecilho à nossa felicidade e por isso é preciso cuidado, por outro lado nos parece que a vida dos personagens só faz sentido enquanto ela está ligada à distração proporcionada pela OASIS, razão pela qual ela deve ser “salva” à todo custo. Encontramos uma explicação para essa ambiguidade nos escritos de Pascal, onde o divertimento aparece como aquilo que nos alivia do peso da miséria humana, mas que também nos impede de vivenciar a felicidade. Mesmo se Ready Player One não parece resolver esse paradoxo, mas apenas expô-lo, talvez caiba a cada um de nós repensar notra relação com o divertimento à partir das pistas oferecidas pelo filme. O mundo tem certamente muitos prazeres a nos oferecer, mas razões distintas nos motivam a desfrutá-las e muitas destas razões podem ser enganosas. A diversão que escolhemos por mera distração é prejudicial, pois no fundo nosso objetivo é apenas de esquecer nosso sofrimento, o que não faz com o sofrimento realmente desapareça. A tentativa de ignorar uma realidade que não queremos aceitar é compreensível, mas perigosa na medida em que esta distração nos impede também de viver de fato o instante presente. O divertimento deveria ser algo que fazemos justamente para desfrutar melhor do instante presente, aproveitando de algo que nos dá prazer simplesmente pela felicidade genuína que decorre dessa atividade. Afinal, são justamente os momentos prazerosos do divertimento que fazem todo sofrimento valer a pena. Suportamos melhor o fardo de uma existência finita se aproveitamos dessa existência de maneira plena, tanto desfrutando do que é agradável, quanto aceitando seu aspecto trágico. Essa consciência é essencial na medida em que é ela que nos motiva a agir e mudar essa realidade para que ela seja mais suportável. Se a distração não altera o fato de que a morte é inevitável para todos, então que ao menos tornemos essa espera o mais tolerável possível, não utilizando o divertimento como anestesiante, mas como estimulante para ações que possam tornar essa existência efêmera mais confortável para todos. Que não nos refugiemos nas diversões desfrutadas ontem ou corramos às distrações de amanhã, mas que sejamos conscientes da vida trágica, mas sublime, que acontece hoje.

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